Escrevi e publiquei este texto nos jornais Correio dos Açores e Diário Insular há pouco mais de um ano. O que sinto, analiso e constato no meu dia a dia confere a este humilde e limitado escrito um sentido cada vez maior. Deixo aqui a reflexão que, paralelamente, constitui uma homenagem a um homem excecional que marcou de forma indelével a minha infância e contribuiu para o meu crescimento como homem e cidadão.
Durante algumas dezenas de anos funcionou
no cimo da Rua do Galo, em Angra do Heroísmo, a Mercearia Machado. Recordo este
espaço com nostalgia, pelos momentos que lá vivi e por ter sido propriedade do
meu tio Alberto, pessoa afável e de uma sabedoria humana incrível, que me
transmitiu uma boa parte dos valores que ainda hoje norteiam a minha vivência
familiar e profissional. O “senhor Alberto” – como era tratado pelos seus
clientes – era um homem sereno, simpático, rosto marcado pelo tempo, calvo
desde muito novo, óculos pretos com hastes em massa, levava sempre a sua camisa
impecavelmente passada a ferro e umas calças de “fazenda” seguras por uns
suspensórios de cor a condizer. Nos pés, uns sapatos de lona que calçava sempre
que chegava de manhã cedo ao seu “mundo” onde uma mistura de aromas de legumes
frescos, especiarias e outras coisas não deixava indiferente quem pela sua
porta passasse. Nesta mercearia vendia-se um pouco de tudo. Ao entrar, um balcão
de madeira corria o espaço de uma parede à outra, apenas interrompido por uma
estreita passagem. Numa extremidade, quatro pequenos bancos de madeira
aguardavam o descanso dos amigos e clientes do tio Alberto. Na outra estavam as
sacas com as leguminosas e os cestos em vimes com as hortaliças, as batatas, as
cenouras e outros produtos da terra. Sobre o balcão moravam dois armários
envidraçados. Num estava o queijo e a marmelada, no outro, chocolates e bombons
que eram vendidos ao quilo. Do lado de lá do balcão, em prateleiras de madeira,
estava exposta toda uma variedade de produtos, alguns guardados em enormes
frascos de vidro ou plástico. Recordo-me sobretudo das especiarias: a pimenta
preta, o cravinho, a canela, o colorau, etc. Era uma mistura de fragrâncias e
de cores inesquecível.
Durante a semana, quando saia da escola,
dirigia-me invariavelmente para a “venda” do tio Alberto. Mal chegava, depois
de ser recebido com todos os mimos e carinhos, era-me servido um lanche de que,
ainda hoje, me lembro da imagem e sabor: três bolachas tiradas de um saco onde
repousavam, pendurado no tecto, que era manuseado com uma vara com um prego
dobrado na ponta, uma generosa fatia de marmelada cortada na hora e um pirolito,
tudo disposto sobre uma folha de papel de embrulho que era estendida em cima da
secretária onde o meu tio fazia a sua “escrita”. Depois de saborear esta
saborosa merenda, era ver-me devorar com atenção e devoção a mestria do tio
Alberto a servir os seus clientes.
Uma boa parte dos artigos eram vendidos
em embalagens habilmente feitas na hora: um cone feito em papel nascia das mãos
do senhor como por magia. Nele era colocada a mercadoria que depois de pesada e
fechado o cone com uma última dobra era pousado sobre o balcão junto das
restantes compras. Na Páscoa, as amêndoas, no Natal os figos passados e as
nozes, tudo era vendido a granel. Quem entrava na mercearia Machado, entrava
num mundo diferente, onde os alimentos sabiam ao que eram, onde se cheirava
qualidade e frescura. O tempo ditou,
naturalmente, o fim da vida do tio Alberto e da sua mercearia assim como de
muitas outras, que mesmo existindo, ainda, já não são o que foram. Vieram os
supermercados, os hipermercados, veio a fartura, vieram os alimentos que estão
disponíveis o ano todo, vieram os sacos, saquinhos e saquetas, as cuvetes, a
película aderente, as caixas e as caixinhas. Foi-se o prazer de comprar, a verdadeira
frescura, e muitas vezes a qualidade. Andamos todos embalados, vivemos num
mundo de plástico! Até o dinheiro é já “de plástico”. Se fizermos uma pausa
e reflectirmos um pouco, se olharmos para o nosso carrinho de compras, vemos a
quantidade assustadora de embalagens que trazemos para casa, desnecessariamente.
É certo que os tempos são outros mas deixo aqui a questão: fomos ou não ao extremo? A reciclagem dos
milhares de embalagens desnecessárias não é a solução! Da próxima vez que os
amigos e amigas, leitores e leitoras, forem às compras, pensem na quantidade de
energia necessária para colocar nas prateleiras a quantidade de embalagens que
os vossos olhos conseguirem alcançar. Já compararam, quando se oferecem
brinquedos às crianças, o volume de lixo que sobra das embalagens, versus o que
realmente interessa? Tudo graças ao petróleo abundante e barato que já não o é,
nem uma coisa nem outra.
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